Sobre saber em que se demorar

Um conto cheio de veracidade sobre como produzi significado do mundo indiretamente a partir da minha mãe

Maria Morena Gomes
4 min readOct 10, 2022
Eu, com uns 5/6 anos, e minha mãe

Quando eu era pequena, minha mãe escrevia de madrugada enquanto eu assistia Bob Esponja e Meu amiganzão, não consigo dizer o nome sem cantar a musiquinha. Ela não escrevia somente em cadernos próprios, mas artigos e teses e, principalmente poesia, em qualquer lugar. Tínhamos um quarto somente para livros e, ainda assim, nossa sala de estar vivia com livros empilhados. Minha mãe nunca gostou de ficção ou romance, gostava mesmo de poesia. Nunca me deixou ler nada dela. Eu queria ser como ela, mas sou da prosa. Agora, encontro traços da minha personalidade que me fazem pensar que escolhi estudar tudo que é direto, cortante, objetivo, certeiro.

Certamente minha mãe era meu maior exemplo de intelectualidade quando pequena. Minha mãe e todos os seus cds na sala, também empilhados, sem ordem específica. Diferenciamos no que diz respeito a poesia e organização. Me lembro de uma das primeiras discussões que tivemos extremamente intelectualizada e academicista, quando assistimos Divertidamente no chão da sala no Now, da Net. Eu achava que a mente humana não pode ser tratada como uma máquina a ser controlada, ela achava que era somente um desenho, por favor assiste como se fosse só um desenho, Maria, por favor.

Eu critiquei duramente a abordagem do filme, e minha mãe me ouviu, mas me questionou. O ponto principal é que não dividíamos o mesmo mundo, coabitávamos. Eu com os meus livros Young Adult, antes de YA ser uma putaria generalizada para adolescentes, e minhas referências na época liberais, das quais ela odiava, e ela com toda a bagagem que eu amava — amo até hoje, furto todos os seus livros para usar na faculdade— e sua recusa aos produtos estadunidenses e sua língua, sua decolonialidade antes de decolonial ser trend.

Aos poucos eu fui me educando com seus cds de MPB sozinha, ela pouco me informava sobre, era tudo muito empírico, como se a minha casa tivesse nuances de conhecimento que nunca, em nenhum momento, me foram forçadas, sequer sugeridas, mas que por meio dela me atraiam involuntariamente. Cassia Eller no acústico, aquele com capa de fundo vermelho e laranja, sempre foi nosso favorito. Non, je ne regrette rien, que cantávamos em um francês horrível, e Malandragem eram músicas que tocavam pelo menos três vezes.

A naturalidade de existir em um espaço onde o silêncio era primordial, e todo o entretenimento era livre, nunca me ocorreu como algo não natural para os outros, até recente. Minha mãe nunca me negou um livro, nunca, sequer quando aos 11 anos eu pedi poesia do Bukowski, o que ela achou um ultraje, mas comentou brevemente e de maneira certeira. Ser questionada pela minha mãe, até hoje, é de uma frustração quase sugestiva. Como se a pergunta me perguntasse se eu gostaria de ser questionada. E paradoxalmente, me corta profundamente, me faz mudar perspectivas. O famoso diálogo/debate ideológico, empregando ideologia da maneira mais abrangente possível, era dado em frases curtas.

Nos demorávamos para falar de emoções, mas minha mãe sintetiza todo o raciocínio crítico intelectual em um pouco mais de duas frases, e segue em frente. Essa percepção me veio tardia, no entanto. Quando eu, na ânsia de fazer um comentário em um jantar sobre um assunto que me era familiar, mas que me era familiar por escolha, me vi com uma frase cortante como as de minha mãe. Me surpreendi por ser capaz de fazer aquilo. Por ser capaz de pegar o cerne de algo e transformar tão rapidamente em um questionamento e, com tão poucas palavras, me colocar.

Eu, que me conheço por divagar entre muitos raciocínios e falar sobre eles simultaneamente, num típico vicio prolixo, típico de quem leu muitas discussões inglesas e russas sobre os mais diversos assuntos e quer parecer inteligente. Minha mãe nunca tenta parecer inteligente. Aquilo era um prazer somente dela, que ela insiste em dizer que hoje não é mais, mas que quando compartilhado, é feito de maneira supreendemente cirúrgica, objetiva, é capaz de te atravessar completamente.

Eu cresci com o horror de ser questionada de qualquer outra maneira, que não a dela. Nunca suportei a autoridade que a escola me impunha ao que eu tinha que ler e aprender, como se despertar o meu interesse não fosse algo meu, do pronome possessivo, que coabitava com o resto do mundo, e que de maneira muito singular e perspicaz fosse se misturando, até que eu entendesse que todo conhecimento se mistura, mas sem os longos discursos de quem quer ser ouvido, embora eu ainda os faça. O que ocasionou em diversas ligações longas e conversas na sala da coordenação pedagógica em todos os colégios que eu estudei.

Porque veja, diferente de minha mãe, eu quero que saibam que eu sei. Duas ou mais frases não me são suficientes, mas tardes e tardes de debate me dão estase. Me surpreendi quando pude ser tão sucinta e passar exatamente o que eu queria dizer, como ela, porque de alguma maneira isso significa que eu ando superando minha própria arrogância. Arrogância branca, feia, que não suporta ser questionada, que eu mesma me empurrei, mas que na nossa sala de estar nunca me foi empurrada. Que seus livros, seus cadernos, seus cd’s, em uma rede mágica, quase hipnotizante, nunca me obrigaram, mas sempre me convidaram a combater.

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Maria Morena Gomes

Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg