Sobre a minha fé, ou a falta dela

Um conto exacerbado de veracidade sobre os locais de fé que frequentei e, curiosamente, a minha avó

Maria Morena Gomes
5 min readJun 4, 2023
Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, Vila Isabel, Rio de Janeiro

Quando tinha apenas 11 anos minha avó sentou comigo na sala de estar da casa dela, em um almoço supostamente informal depois da escola, e me informou que iria morrer em breve. Ela continua firme e forte até hoje, passou a morar no quarto de lado ao meu há dois anos. Mas, na época, a notícia me chocou profundamente. Lágrimas escorreram do meu rosto, e não pararam por dias. Na escola eu chorava, no intervalo eu chorava, chorava vendo velhos na rua, chorava quando a via.

Finalmente ela se sentou comigo novamente e me disse que tudo ficaria bem se eu fizesse o catecismo, e foi assim que eu aprendi como a moral católica funciona. Ela queria me ver concluindo o catecismo antes de partir, e eu subitamente notei que ela não morreria em breve, mas fui imediatamente para a Igreja Nossa Senhora de Lourdes, na 28 de Setembro em Vila Isabel, a qual sempre frequentava com a minha avó nas missas de domingo cedinho, às 7 horas, e comprei uma bíblia, um livro contando a história de Jesus bem colorido e meu livro de exercícios católicos. Terço eu não precisava, porque já tinha os meus, aqueles que minha avó me deu desde pequena.

Minha mãe conversou comigo, um pouco antes dessa transação econômica entre o bolso da minha avó e a Igreja, se era algo que eu de fato queria fazer. Na época ela era cardecista, e eu adorava os livros com histórias cardecistas e os passes. Além disso, adorava o pastel de forno feito na hora do Ramatis, ali na Tijuca. Eu respondi a minha mãe que se era algo que fosse deixar minha avó feliz, então eu faria.

Ir as missas com a minha avó eram momentos de paz enorme. Eu gostava de sentar lá pelo meio-esquerda da Igreja, onde minha avó gosta de sentar até hoje, e descansar ouvindo toda a missa. Os anúncios finais me irritavam, sobretudo porque eu relaxava tanto que sentia muito sono e, por isso, precisava ir dormir no meu quarto rosa choque com papel de parede das princesas o mais rápido possível, o que a minha avó sempre fazia acontecer em pouco tempo.

Até o catecismo eu não me preocupava com o que o padre estava falando, nem com as palestras cardecistas que ia assistir com a minha mãe. O que prevalecia era a sensação de estar relaxada. Com muito sono. Sono que eu sentia falta de noite, e cá para nós, tenho sentido falta todas as noites há muitos anos. Sabia todas as músicas de cór, não precisava dos panfletos que eles distribuíam. A Igreja não era o que é para mim hoje, era quase uma meditação, que eu ia de bom grado.

Na primeira aula de catecismo tudo mudou. Líamos pedaços da Bíblia e dizíamos o que significava, para depois de uma hora e meia comermos um lanchinho e irmos para casa. Não me lembro de nenhum amigo da Igreja dessa turma. A questão da significação, no entanto, me era muito esquisita. Eu sempre entendia uma coisa e a professora me dizia outra. Fui perguntar na escola e para professores se eu estava errada, até que uma colega me disse que não, e uma revelação apareceu na minha frente: Ali não jaziam fatos. O oposto, histórias.

Ainda que minha avó hoje em dia seja ubandista/católica/budista/insira- qualquer-religião-porque-ela-acredita, é a Nossa Senhora Aparecida que concede nossa proteção na minha casa. Acima da porta do meu quarto tem um quadro enorme de Jesus Cristo, aquele branco do olho claro. Na minha sala, um altar com diversas figuras sincretizadas. Minhas janelas cercadas de sal grosso e espadas de São Jorge.

Dos 11 anos aos 17 questionei ferrenhamente o caráter capitalista e institucional da Igreja. Não terminei o catecismo, briguei com a professora sobre o milagre do cego, em que Jesus cura um cego de nascença. Minha mãe foi chamada às adjacências da Igreja, onde tínhamos aula. A partir dali nunca mais pisei na Nossa Senhora de Lourdes. Minha fé é confusa, tenho horror, pavor completo e absoluto de ser tomada por crenças institucionais e, portanto, extremamente liberais.

Fujo do esoterismo, fujo dos coaches. Me contento com raramente ir à gira, a rezar para o altar da minha casa, a usar Nossa Senhora Aparecida no pescoço. Mas não fujo da paz e do descanso que as missas me dão. O catolicismo é tão simples, tão não complexo, tão confortador. Coma a hóstia, tome esse vinho, vá a missa, reze antes de dormir, comemore feriados santos e dê um dízimo simbólico para que o padre possa comprar um carro mais moderno e, assim, todos os seus pecados estão perdoados.

Mas para além disso, é impossível não desfrutar do tom monótono dos padres, da cara bonita dos coroinhas, das lindas imagens esculpidas com vidros coloridos nas vidraças, do pé direito alto, da companhia de todas os idosos do seu bairro, que não ligam para a paz e para o silêncio do lugar, e sim para a fé que sentem verdadeiramente naquele padre e naquela imagem. Não sei se minha fé é cega assim, mas a paz que me abraça nesses ambientes, seja na gira, seja na missa me basta, é maior que qualquer fé que eu possa vir a ter.

Sinto ainda que nenhuma crítica ao neoliberalismo e ao conservadorismo das Igrejas Católicas que eu tenho e, ainda, que eu possa vir a ter, me impede de desfrutar do silêncio da Igreja. Não me arrependo de aos 11 anos ter discutido com a moça que me ensinava sobre Jesus e o Catolicismo, mas me arrependo que escolhi perder esse ambiente de meditação por críticas e questões que eu sozinha jamais vou conseguir resolver, e que sequer quero.

O que quero mesmo, e que me custa apenas acordar cedo em um domingo, é sentir sono, é chegar em casa e voltar a dormir, é sentir a paz de quem não ouviu uma palavra do que estava sendo dito e só desligou a mente. Agora pretendo migrar para a Igreja São Francisco Xavier, do lado do metrô. Abstraio completamente todas as questões passíveis de críticas, engulo meus pensamentos grossos ou inconvenientes perante ao lugar que estou e descanso como em um spa, como se estivesse recebendo um reike, um passe, uma massagem, o que for.

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Maria Morena Gomes

Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg