Para quem vive de fotos

Maria Morena Gomes
4 min readAug 27, 2022

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Minha vó e meu vô, 1965

Eu e minha avó somos pessoas muito diferentes. Enquanto ela se prolonga quando fala, eu também. Enquanto ela faz pequenas coisas parecerem enormes, eu também. Enquanto ela é cínica, eu também. Enquanto ela debocha, eu debocho também. Enquanto ela ama de formas estranhas, eu também. Enquanto ela diz “sim” querendo dizer “não”, eu também. Não me conformo com o afetamento que ela tem com as pequenas coisas, muito menos com o meu. Justifico o meu com o dela. Nos cortamos com frases mais afiadas que vidro, simultaneamente, ensaiando novelas globais, como diz ela. Mas ainda assim somos pessoas muito diferentes, eu prometo.

Quando pequena, nas festas de família, fingia odiar tudo aquilo com um ar nojento de superioridade. Minha avó tirava fotos com uma câmera preta velha, que todo mundo debochava porque câmeras digitais quando eu era pequena já existiam. Minha avó se recusava a trocar o filme pelo cabo USB. Enquanto ela é teimosa, eu também. Uma coisa que ficou marcada em mim é o momento de tirar fotos. Qualquer reunião era motivo de tirar fotos, era muito mais que motivo, era necessidade! Necessidade de recordar daqueles momentos para além das memórias. Costumava ir com ela revelar as fotos em uma loja em Vila Isabel, perto do antigo Petisco.

Mas ao contrário da maioria das pessoas que gostam de tirar foto, e que eu já tive o prazer de conversar com, minha avó pedia para que tirassem dela com as pessoas também. Adquiri um hábito de tirar fotos da minha avó em um nível de arquivo que ocupa minha memória no Icloud com três mil fotos e vídeos. Ela não pode vê-las ou saber da existência, senão fica brava comigo, se zanga como se eu tivesse tirado dinheiro da carteira dela sem permissão. Aliás, enquanto ela se zanga com coisas pequenas, eu também. Brigamos todos os dias e fazemos as pazes todos os dias. Tudo muito silencioso, até virar dramático e, por fim, ela perguntar se eu já comi, o que gera uma conversa fiada longa.

Hoje procurando um óculos escuro dela, meu objeto de desejo desde pequena, achamos caixas e caixas cheias de fotos, das quais ela cuida com muito carinho. De todos os quarenta e tanto afilhados da minha bisa até fotos minhas de quando era pequena. Vimos algumas da minha mãe, que literalmente parecem fotos minhas em preto e branco. Depois algumas de quando minha avó tinha entre sete e dez anos, com datas que eu não vivi, e nomes que eu não conheço escritos na letra dela. Ela pediu que um dia descêssemos as caixas para ver tudo de novo, mesmo a gente tendo feito isso no Natal, o que gerou um briga sobre herança, porque… Famílias, não?

Me lembro de ver as fotos do passado da família, com o meu avô, meu bisa, minha bisa, minha tia avó, todos, e chorar por querer voltar no tempo e ter vivido aquilo ali. Aquele momento que a minha avó capturou, revelou e anotou a data no verso. Chorava porque queria ter visto meus bisas novos, porque queria que a minha avó tivesse me levado ao cinema também, porque eu não estava presente nas festas de aniversário ou na compra de carros que ela registrou. Não aceitava não existir quando esses momentos foram registrados, não ter conhecido aquela versão da minha avó e aquelas pessoas. O mesmo sentimento veio a tona hoje quando achamos sua foto de casamento com o meu avô.

Minha avó de véu e grinalda, a mulher mais bonita que eu já vi, te juro. Ela se gaba até hoje da beleza que o tempo foi mudando devagar, conta dos possíveis casos que lhe foram oferecidos e que ela recusou, em amor ao meu avô. É óbvio que tudo na foto tinha uma história. O véu, a grinalda, o vestido que foi escolhido e pago pelo pai, as sobrancelhas, os dentes brancos (quando não existia clareamento, ela frisa). Outras coisas também que cabem ser escritas, registradas, mas não sei se aqui.

O que me chamou a atenção foi o brilho nos olhos, o sorriso tímido do meu avô, um olhando para cada câmera, o abraço de quem só tinha segurado mãos até ali. Minha avó casou com 22 anos. Três anos mais velha do que eu hoje, mas parecia tão certa de tudo, tão feliz. Ela diz todos os dias que é feliz até hoje. Quando eu via ela chorando, perguntava Vó, tá triste? Não, não! Tô feliz que tô viva. Eu e minha avó somos pessoas muito diferentes, não sei se me basta estar viva para estar feliz, mas enquanto ela vive de fotos, eu também.

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Maria Morena Gomes

Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg