Gostamos do que gostamos?

Um ensaio-divagação sobre o que gostamos e como as nossas interpretações geram novos textos, ainda que leiamos as mesmas histórias de novo e de novo

Maria Morena Gomes
6 min readMar 9, 2023
https://www.businessinsider.com/guides/learning/best-romance-books-goodreads-choice-awards-2020#boyfriend-material-by-alexis-hall-7
Alguns dos livros que concorreram na categoria “Romance” em 2021 no Goodreads Choice Award

Goodreads é uma rede social vinculada à Amazon, em que leitores podem avaliar livros dentro de comunidades. Ela surgiu em 2007 e logo depois foi comprada pela empresa de Jeff Bezos. Dentro das avaliações, normalmente entre um parágrafo e uma linha, você pode colocar sua opinião sobre o livro, assim como a sua interpretação da obra, com um alerta de spoilers. Você também pode dar até 5 estrelas para o livro. Os mais bem avaliados, com média igual ou maior a 3,5 estrelas no momento do lançamento, concorrem a uma premiação de voto popular chamada Goodreads Choice Award. Ainda que muitos livros bons tenham concorrido e ganhado, me surpreendo com a quantidade de livros medianos que são muito bem avaliados pelas comunidades.

É certo que o selo de Goodreads Choice Award não é nada como um Pulitzer, e que tanto o voto popular quanto o ato de avaliar com estrelas não possuem critérios fixos, considerando ainda que cada usuário vai avaliar diante da própria subjetividade. O que me faz refletir sobre a rede de leitores na internet, que se nutrem por sites como este que escrevo, mas também por lados do Youtube e do Tik Tok. Uma rede de leitores, de críticos, por assim dizer, que se escutam somente. Uma ciclo fechado que tira recomendações uns dos outros e reavaliam os mesmos livros, votam nos mesmos livros, fazem manutenção de um espaço para que os mesmos autores escrevam as mesmas dinâmicas, as mesmas histórias previsíveis.

Não me leve a mal, Everything I Know About Love, Os sete Maridos de Evelyn Hugo e Leitura de Verão são recomendações que achei no Youtube e que apreciei bastante. A questão me apareceu, no entanto, quando descobri Notes On Camp, um ensaio da Susan Sontag no seu livro Contra a Interpretação, dentro de um vídeo em que a Sally Rooney apontava suas inspirações para Beautiful World, Where Are You, e fui imediatamente ler. Quando fui marcar no Goodreads a minha leitura, senti uma necessidade súbita de ler toda e qualquer avaliação sobre o ensaio, e descobri que, embora muita gente ache interessante, honesto e de uma verossimilhança extrema, muita gente também acha elitista e pretensioso.

O que isso diz sobre Sally Rooney, sobre as personagens que ela criou, sobre as pessoas que estavam escrevendo as avaliações foram dúvidas que me passaram, mas sobretudo, o que dizia sobre mim ter gostando tanto do ensaio e ter continuado lendo o livro, ainda que muitos considerassem a autora amicíssima do rigor e do erudito, e por isso, elitista. E essa dúvida cruel me fez ignorar o que eu achava do ensaio em si, e pensar somente no que significava eu ler o que eu leio, o que isso diz sobre mim.

Para além disso, naturalmente quando você lê algo nem tudo te satisfaz, nem tudo você concorda. Eu decidi, então, anotar o que eu não concordava tentando interpretar de uma maneira que coubesse dentro dos meus ideais e valores, criando uma interpretação que me trouxe gratificação por ter lido algo que me coubesse, que representasse o que eu acredito. Por que eu preciso que tudo que eu leio entre dentro desse campo de “eu concordo”? O quanto de literatura boa, inspiradora, informativa e interessante eu perco quando só me permito ler dessa bolha?

E o pior: Por que eu preciso concordar com as avaliações? Por que eu não posso apenas ler e entender o que a autora quer passar, utilizar meu pensamento crítico para entender o que eu acredito caber ou não, e seguir em frente? Por que eu preciso da opinião e interpretação de milhares de outros usuários do Goodreads para ter uma opinião, que sequer posso chamar de própria?

É nesse sentido que comecei a me questionar se gosto do que gosto ou se tudo que gosto foi apontado para mim como algo “bom”, mesmo que nada de diferente, sequer original, ou seja, que não repete os exatos mesmo componentes, estivesse ali. E se, em uma maior escala, gostamos do que gostamos apenas porque nutrimos recomendações e interpretações de pessoas dentro de nossas bolhas/comunidades? Nesse caso, eu não sei formar opiniões próprias, principalmente porque tudo se perdeu e continuará a se perder em interpretações alheias do que as coisas significam, sejam elas livros, filmes, estéticas, a própria linguagem. Ainda que “perder” signifique transformar-se em algo novo.

O que eu gosto é formado, portanto, de uma constante tensão entre as intepretações das interpretações e as obras em si. Os comentários no Goodreads sobre os livros, com tamanho de sinopses e argumentação de resenha crítica, vem da relação da obra com o leitor, e as simbologias que esse leitor carrega e relaciona às intenções do autor, mas que não são necessariamente o que o autor quis passar, e que acabam distanciando a minha opinião ainda mais da obra. Se me preocupo apenas com as avaliações, me perco do texto original, sendo “texto” aplicável a qualquer combinação de forma e conteúdo, e “original” sendo o texto primeiro. E quanto mais me distancio, as interpretações passam a ser novos textos em si, que tensionam com a obra primeira, mas que tensionam também com o que eu penso dessa avaliação.

E mais: Se a obra for uma síntese do autor e eu tiver uma interpretação minha, mas também ler as interpretações alheias, esses componentes formam cadeias de tensão. O que autor quis propor é uma síntese que se tensiona com as avaliações da obra, que se tensiona com a minha própria interpretação.

A solução que eu encontrei é cortar esse caminho e aproximar as minhas interpretações com as interpretações do autor, de maneira que a minha interpretação seja sempre uma decodificação daquele código proposto, e o que for para além da obra, uma anotação a parte, porque não passa de uma associação ou interpretação. A melhor parte dessa solução, para além de me importar menos com as estrelas do Goodreads e sair desse ciclo vicioso, foi que às vezes eu posso só sentir o que é, e não ficar tentando entender e concordar com tudo e todos.

Dito isso, ainda acho o espaço de sites como o Goodreads importante, porque são espaços de propagação da voz de cada um, em detrimento da voz de uma única pessoa. É importante pensar coletivamente, debater os assuntos e criar opiniões e interpretações dentro das discussões, mas é fundamental que as nossas interpretações sejam nossas, e não construídas unicamente por esses espaços. É claro que interpretações de interpretações se distanciam das obras, talvez não de uma maneira precisamente excludente, em que a obra entra em segundo plano, e sim de forma que a interpretação se construa como algo novo, não autorreferente, mas referente a obra.

Talvez uma das melhores maneiras de exemplificar isso seriam as fanfics, que são interpretações da obra com uma certa criatividade por parte do fã que a escreveu, e que não tentam explicar a obra, pois se assumem inteiramente como algo novo, mas não autorreferente, e sim fazendo referência a obra.

Por fim, não sou contra as interpretações que fazemos para fazer sentido das coisas. Sou contra tomarmos as interpretações dos outros como nossas, sem formar uma ideia própria do que se gosta ou do que não se gosta dentro do texto, fazendo assim da reprodução de uma opinião genérica o padrão na avaliação de livros, além da manutenção desses espaços-bolha em que tiramos recomendações e opiniões uns dos outros, sem refletir sobre a repetição, sobre a falta de espaço para novos autores, com novas histórias e novos componentes. Sem refletir também se gostamos do que estamos lendo/ouvindo/vendo ou se apenas tomamos as críticas/interpretações dos outros como verdades absolutas sobre o texto.

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Maria Morena Gomes

Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg