Fins premeditados

Sobre fins, descontinuidades, recomeços e tudo que envolve um conceito completamente inventado

Maria Morena Gomes
4 min readDec 8, 2023

Existem momentos que premeditam o fim. Ou melhor, existem momentos que anunciam o fim um pouco antes dele chegar, quase como o arrepiar da pele diante de um vento pré chuva, ou o cheiro de terra molhada. Momentos de gritaria interna, em que cada partezinha do seu corpo te diz que o fim chegou, mas sua cabeça não acredita, ignora, e você só reconhece quando o pensamento te ocorre muito tempo depois do fim ser um imperativo te ordenado.

É uma análise minuciosa que te ocorre ocasionalmente em um domingo de manhã, entre um cigarro e um café, em um completo silêncio, quando ninguém acordou ainda. O fim nem sempre é um fim, porque a temporalidade é inventada, como tudo, por nós. O fim não segue a linearidade que nos impomos, ao contrário, o fim vem em doses dolorosas, e simultaneamente reconfortantes. Quanto mais demora maior a agonia e maior é a permanência, se é que isso faz algum sentido.

O fim é um abraço apertado na portaria de um prédio qualquer, aos prantos, sem conseguir aceitar que é o fim. O fim é o uber chegando e todos os músculos do seu corpo agarrados a pequena possibilidade de ninguém entrar no carro e todo mundo ficar ali, congelado, prolongando o fim com medo demais do que vem depois.

O fim é um samba lotado, sentado do lado de fora com uma cerveja na mão decidindo se é melhor ir embora ou ficar. O fim é apertar mais um cigarro para decidir se você de fato irá, quando você já sabe a resposta. O problema principal do fim é que em algum momento, milésimo de segundo, ele invade seus pensamentos e tudo que você pode fazer é deixar acontecer, sobretudo porque você é uma pessoa sã e ninguém vive preso no tempo. O tempo não congela, os relógios não param, os meses passam, ainda que o fim não seja linear.

O fim é uma quentinha na mão e um amigo do lado, no meio fio de uma rua que você nunca esteve antes, decidindo quem vai levar para casa o que, e eu, francamente, não quero nenhum resquício do que aconteceu, pode levar, por favor. O fim é acordar no dia seguinte com a cabeça latejante, tentando associar onde você foi parar, tentando linkar os acontecimentos em um espaço tempo, em uma linha qualquer, em que eles fazem sentido.

O fim é o último copo de cerveja, aquele ponto específico da cerveja, o qual você sabe que se passar dele certamente se sentirá mal. Ou pior, o fim é aquela dose de cachaça que te ofereceram e você aceitou, tomou com a sensação de que poderia ser o fim, e foi mesmo, porque te apagou completamente. O fim é dor nas costas depois de tanto tempo em pé, é sua coluna gritando para que você se deite.

O fim, esse fim específico, é a conversa constrangida entre dois amigos em uma rua muito, mas muito fria, em uma noite no início de agosto, em que ninguém quer o fim, mas o avião vai sair de madrugada, e você não tem escolha senão aceitar o fim. O fim é um obrigada por tudo, sem abraços, porque ninguém quer admitir que é a última vez que vocês vão se ver em um longo período de tempo inventado. O fim é o avião decolando de fato, e o choro solto pensando no milésimo de segundo que esse fim passou pela sua cabeça horas e horas antes.

O fim é sair correndo de um prédio aos 14 anos, sem falar com ninguém, porque o fim te assusta muito, te paralisa, e qual o ponto de se despedir se o fim já foi premeditado?

O fim é o por do sol em Ipanema, depois de um dia inteiro de praia lotada e cochilos em meio ao barulho. É sentar na beira do mar para tentar ver melhor no meio de tanta gente que também quer ver esse fim antes de partir para casa. O fim é um por do sol cheio de nuvens, que aos seus olhos só alcança as luzes, porque o sol mesmo já foi.

O fim em si é previsível. O que é imprevisível é o que vem depois, e por isso, na linearidade do tempo que construímos, o fim é só mais um começo. Seja o abraço apertado, quando você pede a todos os deuses que seus corpos se mesclem e seja humanamente, mortalmente, mundanamente impossível de separar, que mais tarde gera uma nova chegada, inesperada, cheia de calor, de cachaça gostosa, de aconchego, de esperança. Seja pisar de novo na sua cidade e sentir o abraço da sua família no aeroporto. Seja uma dipirona para curar a dor de cabeça e começar o dia. Seja o que for, o fim é premeditado, mas as possibilidades são infinitas.

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Maria Morena Gomes

Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg