“Essa refinada timidez está nos matando”

Um ensaio sobre a relação entre mulheres diante da necessidade de não delimitarmos fim umas nas outras. E também sobre divagações de domingos calmos.

Maria Morena Gomes
4 min readApr 7, 2024

Na parede em que o sol bate das sete da manhã até às onze encontra-se um papel, um papel desgastado e já manchado pelos raios, que mesmo baixos o tinge todos os dias. No papel, naquele papel específico, escrito em letras pequenas, as quais até mesmo de perto é difícil de compreender, há a frase da ativista chicana e escritora Cherrie Moranga:

“É essecial que nós feministas confrontemos nosso medo e resistência uma em relação às outras, porque sem isso, nós não sobreviveremos. O verdadeiro poder, como eu e você sabemos, é coletivo. Eu não posso tolerar ter medo de você, e nem você de mim. Se para isso temos que bater cabeças, que façamos. Essa refinada timidez está nos matando”

Ainda que escrita em 1998 em seu ensaio “A guerra”, o contexto pouco importa para mim, que vejo a frase já desvinculada de seu texto e associada a minha parede. Se teóricos brancos ultrapassados podem abrir mão dos contextos e serem consagrados por isso, preciso dessa licença poética nesse domingo em que abro o computador e escrevo.

Há três anos fiz a escolha de imprimir essas frases específicas do ensaio para colar na minha parede. “É essencial que nós feministas confrontemos nosso medo e resistência uma em relação às outras”, eu sempre li com uma vírgula separando o pronome “nós” do substantivo “feministas” e do verbo “confrontemos”. Talvez por receio de me afirmar parte de um grupo maior do que a soma dos indivíduos. Talvez por não querer entender que o “eu”, dentro do verbo em terceira do plural “nós”, está em estado de confronto.

É claro que a frase afirma a necessidade da práxis do movimento feminista para que haja um processo dialético do andamento das pautas, das nossas relações dentro da sociedade e, sobretudo, das nossas relações intímas entre os pares. Ainda assim, falar sobre relações entre pares é muito diferente do que vivê-las.

Ter medo de outra mulher, particularmente, acontece comigo dentro de relações nora e sogra, sobretudo porque não quero decepcionar a mulher que deu vida para aquele com quem me relaciono. Medo esse marcado a ferro quente pelo patriarcado, no qual a possibilidade de ser lida como uma influência negativa ou como uma mulher muito insira-um-adjetivo pode vir a influenciar a minha relação. No dia-a-dia em si, já não encontrava esse sentimento há muito tempo. Ter medo de outra mulher é exatamente o contrário do que fui ensinada a ser em uma casa cheia de mulheres, em uma família majoritariamente feminina, e ainda assim encontro uma espécie de medo do medo.

Medo de ter medo de outra mulher é, na grande verdade, uma responsabilidade emocional, uma responsabilidade social. Treinar meu próprio cerébro a desassociar outras mulheres de medos causados por homens, de medos causados por uma sociedade construída por homens e para homens é algo que construo com o tempo. Não é fácil deixar as dicussões somente no campo das ideias, das falas jogadas ao vento quando a própria ação de escrever, seja aqui ou em qualquer lugar, já é uma ação que pode vir a ser de luta.

E a luta presupõe ataque. Presupõe também defesa, como faço desse espaço em que você me lê. Mas que maravilha que nós estejamos em estado de luta entre nós, só não para nós feministas — sem vírgula, e sim para o resto, que se disfarça de entendido para os assuntos de gênero. Se eu estou em estado de luta, há previsão de finitude na própria gramática em que meu “eu” está inserido. Tudo bem, o meu “eu” é finito, e o seu também.

Quando Cherrie escreve “Essa refinada timidez está nos matando” talvez fosse isso também que ela quisesse dizer. Talvez seja melhor às claras. Estar em constante estado de luta para com as outras, para com nossos pares nos torna, todas, finitas. Compreendo bem a necessidade de mártires antes das heroínas e dos heróis. Mas que não confundamos a timidez com nos atacar generalizadamente. Que não confundamos a necessidade de mudanças de direção com a ideia de uma nova tese que pauta o nosso fim coletivo nas finitudes uma das outras, mas sim nossa sobrevivência, vivência e convivência.

É essencial que eu mulher, assim como você mulher, cortemos, dilaceremos, excomunguemos esse horror uma das outras, para que nossas batidas de cabeça sejam caminhos de um futuro em que possamos conviver umas com as outras, para que não caiamos na falácia de um eu individualizado, que compete um com o outro não por espaços de existência digna, mas por espaços pequenos e cavernosos dentro de um homem. E, sobretudo, para que não nos cancelemos dentro de nossas finitudes, mas sim para que compreendamos como viver dentro delas.

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Maria Morena Gomes

Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg