“Chamar é ser atendida”

Um ensaio sobre uma frase, mas também o quão libertador é se testemunhar

Maria Morena Gomes
3 min readJul 15, 2024

(Imagem da capa de “ O Riso da Medusa”, Cixous, edição Bazar do Tempo)

Da mesma forma que cheguei, em uma sexta-feira a noite, calada com olhos atentos, sai em um segunda à tarde. Héléne Cixous escreveu “A necessidade de testemunhar e de ter testemunhas, é a necessidade em si: chamar é ser atendida”. De supetão, mas também depois de três anos, fui atendida. E tudo que me requeria, mas que não me atendia, se tornou um copilado de testemunhas indiretas, que observam os fatos sobre mim, mas que não possuem conhecimento palpável para decidir nada.

Em uma conversa de quarenta minutos com uma amiga no telefone em uma manhã de quarta-feira, depois de um longo café da manhã acompanhada de um livro e da rede em minha varanda, ouvi atentamente à história que estava sendo contada. O contexto, como quase sempre, não é relevante em si para o texto, porém uma frase ficou presa na minha cabeça: “Eu disse que posso ajudar, mas ela precisa dela primeiro.”

Não posso afirmar que sou atendida todos os dias. Tem dias que acordo tarde, exagero no número de cigarros, almoço às 16 horas e lembro de tomar água somente antes de dormir, sendo carregada por xicarás de café ou copos de mate. Tem dias que choro com medo do futuro, que me sinto tão só que nem o abraço daquele que mais amo me faz pisar completamente no chão.

Para que esses dias passem, me isolo em um quarto construído para atender as minhas necessidades, com a cara enfiada em uma biografia de alguém que já morreu e não necessariamente foi importante, ou em uma série mainstream que me leva a reflexão que consigo fazer mais do que personagens de 30 anos que ainda se desesperam por coisas supérfluas. Resolvo me atender. “Finalmente”, penso.

O resto da semana flui como deveria ser, e os abraços se tornam mais gostosos, os encontros mais vivos, a cor do sol me abraça, o amor entorna pelas janelas. Foi, certamente, um longo caminho para chegar até aqui. Antes da cultura terapeutizada ser trend, me encontrava já na terapia. E quando li O Riso da Medusa, de Cixous, encontrei nessa frase um acalento.

Repito: “A necessidade de testemunhar e de ter testemunhas, é a necessidade em si: Chamar é ser atendida”. É evidente que preciso sinalizar minha discordância em diversos momentos desse chamado-manifesto, é evidente também que validação externa é algo que não dispenso, mas existe um conforto muito grande em perceber aquilo que minha amiga querida disse para outra pessoa. Precisamos de nós primeiro.

Cheguei em uma sexta-feira à noite, calada e atenta, em uma necessidade exarcebada de me encaixar em uma dinâmica que não me pertencia, mas que eu me faria caber a qualquer custo. Tudo me era muito convidativo, o prestígio, os lugares, os almoços e jantares, até mesmo os apelidos. Gritava por uma necessidade de testemunhas, queria marcar a minha importância e me dediquei como se a minha vida dependesse disso. Entranhada nesse calor de dizer que tudo é urgência, nessa insurgência inerente de testemunhas.

Saí, em uma segunda à tarde, com um intervalo de anos, com frescor de quem encerra ciclos. Não me cobrei estar atenta, não quis olhar nos olhos de ninguém, implorei para que ninguém me pedisse nada, que ninguém sequer me negasse o direito de dizer “Chega! Cansei! Não quero mais! Essas testemunhas não me atendem, quem me atende agora sou eu!”.

Ao acordar no dia seguinte, percebi que nunca vi o sol brilhar tão forte no início de julho. Percebi que a música de Jorge Ben Jor fez o dia ficar mais bonito, que os livros de Clarice Lispector na minha cômoda me abraçam. Percebi que nada importa muito se estou bem, viva, se vejo o sol de manhã e se vejo a lua à noite, se faço carinho no meu cachorro e se beijo meu namorado, se dou boa noite para minha mãe e para a minha avó, se consigo fazer um café para ter forças de recomeçar no dia seguinte.

Percebi que é libertador se testemunhar, e de repente, fui atendida.

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Maria Morena Gomes

Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg